O espírito humano torna-se magnânimo quando manifesta a particularidade. O trabalho mecânico está subordinado a regras e realiza resultados formais, produtos caracterizados pela regularidade, por oposição, a expressividade resulta da singularidade. É preciso que essa actividade resulte de um pensamento disciplinado para que se torne fecundo, uma vez que, todo o ofício se exerce sobre uma matéria densa que precisa ser dominada. Como tantos outros miúdos, a Vera começou a fotografar concertos com uma pequenina máquina digital, isto foi antes da era-da-internet-das-coisas. À sua volta, outros miúdos pegavam em guitarras, emulsionados por uma vontade insondável. Com o tempo, a Vera tornou-se coleccionadora de memórias, arquivista de sonhos.
Estou convencido que o que existe de genuinamente humano é esta compulsão criadora e o que esta era tecnológica tornou possível foi algo sem precedentes nessa matéria. Uma miúda, descendente de alentejanos migrados no Barreiro, gente operária, humilde, pode fintar o destino e entregar-se à paixão inusitada de registar os seus amigos e de os surpreender. Essa miúda, torna-se autora de um dos mais importantes arquivos de histórias do que outros miúdos, com guitarras e não só, estavam a fazer. Construído à custa de muitas horas roubadas ao sono e dedicadas ao seu ofício: olhar, registar, arquivar. A mesma Era que fez do seu ofício uma espécie em vias de extinção, quando os efeitos da reprodutibilidade técnica se tornaram ainda mais tangíveis, deu-lhe as ferramentas para se distinguir.
Alimentada pela mesma inocência, irreverência e impulso para acção, que são a linha bissectriz que une a Vera senhora do seu nariz e essa miúda fã de Deftones que girava k7's até ficarem gastas. Tal como Sísifo, para quem cada átomo da sua pedra, e cada socalco da ladeira através da qual faz rolar essa pedra montanha acima e abaixo para o resto da eternidade, dá forma a um mundo em que o esforço na ascensão às alturas é suficiente para insuflar o seu coração. Talvez a grande obra tenha menos importância por si própria do que na provação que exige e na oportunidade que oferece a cada um para vencer os fantasmas e se aproximar um pouco mais da sua realidade íntima.
Tiago Sousa
Conheço, num barco, o Alex D’Alva Teixeira, que renova a minha razão para estar próxima da Flor Caveira. Pouco tempo depois desse nosso primeiro encontro os D’Alva arrancam e com isso as fotografias à banda e ao Alex multiplicam-se. Da Flor continuo a fotografar nesses anos o Samuel Úria, o Jónatas dos Pontos Negros com o seu projecto Tudo é Vaidade, os Lacraus e os Xungaria no Céu do Tiago Guillul.
A MERZBAU termina, mas a minha relação com muitos dos músicos mantem-se. É ao longo destes 3 anos que surgem os Pista, Minta e They Are Heading West. E através do Noiserv conheço e começo a fotografar os You Can’t Win Charlie Brown.
O Fachada por sua vez volta a apresentar-me gente nova e cruzo-me com a Cafreta por causa dele, destacando as Pega Monstro e o Éme.
E é no final de 2013 que sai a primeira publicação. Um desafio do Tiago Pereira da Música Portuguesa a gostar dela própria que nunca foi concretizado e acabou por se transformar num pequeno caderno de retratos, que montei com a Silvia Prudencio. Escolhi 13 músicos que de alguma forma tinham sido valiosos para o ano de 2012 ou que iriam saltar em 2013: Filho da Mãe, Márcia, Alex D’Alva Teixeira, Noiserv, Celina da Piedade, Samuel Úria, Norberto Lobo, Capicua, Nick Nicotine, Sara Serpa, Francisca Cortesão, Heber Marques e Manuel Fúria.