O espírito humano torna-se magnânimo quando manifesta a particularidade. O trabalho mecânico está subordinado a regras e realiza resultados formais, produtos caracterizados pela regularidade, por oposição, a expressividade resulta da singularidade. É preciso que essa actividade resulte de um pensamento disciplinado para que se torne fecundo, uma vez que, todo o ofício se exerce sobre uma matéria densa que precisa ser dominada. Como tantos outros miúdos, a Vera começou a fotografar concertos com uma pequenina máquina digital, isto foi antes da era-da-internet-das-coisas. À sua volta, outros miúdos pegavam em guitarras, emulsionados por uma vontade insondável. Com o tempo, a Vera tornou-se coleccionadora de memórias, arquivista de sonhos.
Estou convencido que o que existe de genuinamente humano é esta compulsão criadora e o que esta era tecnológica tornou possível foi algo sem precedentes nessa matéria. Uma miúda, descendente de alentejanos migrados no Barreiro, gente operária, humilde, pode fintar o destino e entregar-se à paixão inusitada de registar os seus amigos e de os surpreender. Essa miúda, torna-se autora de um dos mais importantes arquivos de histórias do que outros miúdos, com guitarras e não só, estavam a fazer. Construído à custa de muitas horas roubadas ao sono e dedicadas ao seu ofício: olhar, registar, arquivar. A mesma Era que fez do seu ofício uma espécie em vias de extinção, quando os efeitos da reprodutibilidade técnica se tornaram ainda mais tangíveis, deu-lhe as ferramentas para se distinguir.
Alimentada pela mesma inocência, irreverência e impulso para acção, que são a linha bissectriz que une a Vera senhora do seu nariz e essa miúda fã de Deftones que girava k7's até ficarem gastas. Tal como Sísifo, para quem cada átomo da sua pedra, e cada socalco da ladeira através da qual faz rolar essa pedra montanha acima e abaixo para o resto da eternidade, dá forma a um mundo em que o esforço na ascensão às alturas é suficiente para insuflar o seu coração. Talvez a grande obra tenha menos importância por si própria do que na provação que exige e na oportunidade que oferece a cada um para vencer os fantasmas e se aproximar um pouco mais da sua realidade íntima.
Tiago Sousa
Em 2006 inauguro o blog com um Outfest fotografado, consistentemente pela primeira vez.
É nesta altura que começo a relacionar-me de forma mais próxima com o Tiago Sousa, destacado numa das fotos maiores do poster e o escriba do texto que o acompanha.
O Tiago começava a MERZBAU. Tempos de myspace, forum sons, bolachas gratis, concertos sem telemóveis e muita energia à volta de tudo o que podíamos fazer sozinhos.
É nestes anos, que de forma muito consistente, a MERZBAU ganha caminho com edições digitais, promoção de músicos, organização de concertos, tudo o que possamos imaginar, que um grupo de amigos conseguia fazer pela música uns dos outros.
Eu, como amiga do Tiago, começo a interessar-me pela ideia de documentar os concertos, fazer os retratos para promover e ajudar em tudo o que fosse possível.
Aprendemos muito juntos.
Juntavam-se à Merzbau gente como o Luís Nunes (benjamim), Noiserv, Lobster, BFachada. É numa noite organizada a meias entre a Merzbau e o Má Fama de Sérgio Hydalgo (actual curador de música da ZDB) que vejo o Norberto Lobo tocar pela primeira vez. É através do Fachada que conheço a Márcia e o João Paulo Feliciano, é com ele que vou pela primeira vez ao Golden Pony e que chego até à Flor Caveira.
A Flor Caveira tem a sua fase de maior força exactamente nessa altura. Vejo nesses anos muitos concertos de Samuel Úria, Pontos Negros, o Tiago Guillul, nas suas mais variadas formas.
Também é em 2009 que conheço e fotografo pela primeira vez uma das minhas bandas favoritas no Namouche - os Linda Martini.
Em 2007 o Sérgio Hydalgo começa a ser curador para a música da Galeria Zé dos Bois. Amigo próximo leva-me a frequentar a sala muito assiduamente.
Sublinham-se desses 4 anos os nossos encontros com a Julianna Barwick, os primeiros concertos do Bonnie Prince Billy, Konono #1 no Jardim Botânico, Dirty Projectors e Lightning Bolt.
Vera Marmelo